O "Anti-devorista"
Artigo do Jornal,
"Semanário.pt
António Ramalho Eanes, o “anti-devorista”
por Paulo Gaião
2008-09-19 01:20
Ao longo da história portuguesa, muitos heróis fizeram-se
pagar em dinheiro pelos serviços em prol da liberdade, não
se importando com a questão ética e com o empobrecimento
dos cofres públicos. Eanes não.
A recusa de Ramalho Eanes em receber uma indemnização de
mais de um milhão de euros por parte do Estado é uma matéria
que, num país com uma comunicação social mais independente
e sensibilizada para a crise não só económica como
moral em que o país se encontra há muitos anos, merecia
a entrada de um telejornal. A notícia soube-se no sábado.
Em vez de Eanes, os telejonais abriram com Ronaldo no sábado e
com Madonna no domingo, sinais da voracidade em relação
ao dinheiro, que está na origem da decadência das sociedades
modernas, como bem recordou Bento XVI em França, no passado fim-de-semana
, e da mediocridade dos tempos, em que são os futebolistas e as
estrelas rock que têm génio, como já observava Robert
Musil nos anos 30 em relação aos cavalos e, curiosamente,
já em relação às estrelas da bola, anunciando
o esmagamento da cultura e dos espíritos superiores.
A história conta-se rapidamente. Em virtude de um decreto-lei de
1984, feito no tempo de um governo de Mário Soares, ao que se diz
elaborado com propósitos políticos revanchistas, os presidentes
da República deixavam de poder acumular a reforma respectiva com
quaisquer outras reformas ou pensões do Estado. A lei pareceu feita
à medida de Eanes, o único presidente eleito desde 1976
e não com intuitos de moralização pública.
Eanes, apesar de bem perceber que a lei era feita à sua medida,
dois anos antes de abandonar o Palácio de Belém e não
se poder recandidatar, promulgou-a, o que mostra uma elevação
de espírito absolutamente ímpar e uma abnegação
patriótica única. Cavaco Silva, quando chegou há
dois anos a Belém, levou esta questão antiga para resolver.
O actual Presidente da República pode ter muitos defeitos mas rege-se
por padrões éticos e morais que são muito semelhantes
aos de Eanes. Cavaco não descansou enquanto não levou o
governo a rever esta injustiça em relação a Eanes.
Habituado a ver muitos a serem compensados pecuniariamente sem motivo
ou com razões forçadas, Cavaco deve ter achado que com Eanes
tinha de se ressarcir uma situação única de injustiça,
sendo a única via a patrimonial. Enviados do próprio governo
terão falado com a família Eanes em privado. A ideia do
executivo era não só alterar a lei, como fazê-lo retroactivamente,
beneficiando Eanes e reparando uma injustiça. Porém, Eanes,
recusou a indemnização, num valor que, com os juros elevados,
lhe daria mais do que uma reforma de Presidente da República.
Num país onde, ao longo de muitos momentos da história portuguesa,
até os heróis se aproveitaram desta condição
para terem títulos, empregos, indemnizações, Ramalho
Eanes é um exemplo único que, quando a história pousar,
lá para o final do século XXI, princípios do século
XXII, e os princípios mais belos da civilização humana
renascerem, há-de ser admirado pela sua rectidão e patriotismo.
Por exemplo, os heróis da revolução liberal de 1834,
apesar de todo o misticismo que anda à volta do seu papel, aproveitaram
a situação para enriquecerem e aumentarem o seu património,
à custa dos cofres públicos, com esse escândalo nacional
que foi a venda, a troco de títulos de indemnização
pelos serviços liberais prestados, de milhares de prédios
expropriados às ordens religiosas, num processo que, curiosamente,
tem semelhanças com o que aconteceu com o desmantelamento da URSS,
quando alguns oligarcas comparam títulos e ficaram detentores de
grandes negócios, como o petróleo. Vasco Pulido Valente,
num livro que escreveu, chamou-lhes mesmo a estes heróis liberais,
que hoje dão nome a muitas ruas de Lisboa, os "devoristas".
Após a consolidação da democracia portuguesa, também
muitos heróis se aproveitaram da situação para obterem
bons cargos, boas pensões, uma boa rede de conhecimentos e influências
para os seus negócios, fazendo-se pagar pelo seu papel na defesa
da liberdade. Com a entrada de Portugal na economia de mercado, depois
das expropriações comunistas do PREC, também se indemnizaram
muitos grupos económicos que se consideravam vitimas da situação.
O Estado voltou a ficar sacrificado, empobrecendo. Com a agravante de,
nalgumas situações, os grupos económicos terem sido
reinvestidos nos seus bens e valores e depois terem vendido tudo aos estrangeiros,
como aconteceu com a venda do Totta ao Santander, por António Champalimaud.
Eanes, um homem que participou no 25 de Abril e que fez o 25 de Novembro
teve tudo nas mãos. Se não fosse a figura ímpar que
é, podia ter sido um ditador, espalhando um banho de sangue em
Portugal, ou um "devorista", fazendo-se pagar bem caro pelo
preço da liberdade e da democracia que garantiu ao país.
Não foi uma coisa nem outra. É só um homem íntegro
e um Patriota. À semelhança de Eanes, faça-se também
justiça aos militares deAbril. Quando se fizer a história,
há-de chegar-se à conclusão que poucos enriqueceram,
o que é mais um feito notável, num país que quase
sempre foi gerido com base num rancho que era preciso servir.
…
Paulo Gaião"
