Limpeza étnica
Um texto da autoria de Mário Crespo e que, se não fosse verdade, bem podia ser uma anedota à portuguesa.
"Limpeza étnica
00h30m
O homem, jovem, movimentava-se num desespero agitado
entre um grupo de mulheres vestidas de negro que ululavam lamentos. "Perdi
tudo!" "O que é que perdeu?" perguntou-lhe um repórter.
"Entraram-me em casa, espatifaram tudo. Levaram o plasma, o DVD a
aparelhagem..." Esta foi uma das esclarecedoras declarações
dos autodesalojados da Quinta da Fonte. A imagem do absurdo em que a assistência
social se tornou em Portugal fica clara quando é complementada
com as informações do presidente da Câmara de Loures:
uma elevadíssima percentagem da população do bairro
recebe rendimento de inserção social e paga "quatro
ou cinco euros de renda mensal" pelas habitações camarárias.
Dias depois, noutra reportagem outro jovem adulto mostrava a sua casa
vandalizada, apontando a sala de onde tinham levado a TV e os DVD. A seguir,
transtornadíssimo, ia ao que tinha sido o quarto dos filhos dizendo
que "até a TV e a playstation das crianças" lhe
tinham roubado. Neste país, tão cheio de dificuldades para
quem tem rendimentos declarados, dinheiro público não pode
continuar a ser desviado para sustentar predadores profissionais dos fundos
constituídos em boa fé para atender a situações
excepcionais de carência. A culpa não é só
de quem usufrui desses dinheiros. A principal responsabilidade destes
desvios cai sobre os oportunismos políticos que à custa
destas bizarras benesses, compraram votos de Norte a Sul. É inexplicável
num país de economias domésticas esfrangalhadas por uma
Euribor com freio nos dentes que há famílias que pagam "quatro
ou cinco Euros de renda" à câmara de Loures e no fim
do mês recebem o rendimento social de inserção que,
se habilmente requerido por um grupo familiar de cinco ou seis pessoas,
atinge quantias muito acima do ordenado mínimo. É inaceitável
que estes beneficiários de tudo e mais alguma coisa ainda querem
que os seus T2 e T3 a "quatro ou cinco euros mensais" lhes sejam
dados em zonas "onde não haja pretos". Não é
o sistema em Portugal que marginaliza comunidades. O sistema é
que se tem vindo a alhear da realidade e da decência e agora é
confrontado por elas em plena rua com manifestações de índole
intoleravelmente racista e saraivadas de balas de grande calibre disparadas
com impunidade. O país inteiro viu uma dezena de homens armados
a fazer fogo na via pública. Não foram detidos embora sejam
facilmente identificáveis. Pelo contrário. Do silêncio
cúmplice do grupo de marginais sai eloquente uma mensagem de ameaça
de contorno criminoso - "ou nos dão uma zona etnicamente limpa
ou matamos." A resposta do Estado veio numa patética distribuição
de flores a cabecilhas de gangs de traficantes e autodenominados representantes
comunitários, entre os sorrisos da resignação embaraçada
dos responsáveis autárquicos e do governo civil. Cá
fora, no terreno, o único elemento que ainda nos separa da barbárie
e da anarquia mantém na Quinta da Fonte uma guarda de 24 horas
por dia com metralhadoras e coletes à prova de bala. Provavelmente,
enquanto arriscam a vida neste parque temático de incongruências
socio-políticas, os defensores do que nos resta de ordem pensam
que ganham menos que um desses agregados familiares de profissionais da
extorsão e que o ordenado da PSP deste mês de Julho se vai
ressentir outra vez da subida da Euribor.
Mário Crespo"
